Aí está mais uma opinião sobre o
livro que contém erros de Português. Desta vez quem opina é Sírio Possenti, professor associado do
Departamento de Linguística da Unicamp e autor de "Por que
(não) ensinar gramática na escola", "Os humores da língua",
"Os limites do discurso", "Questões para analistas de discurso"
e "Língua na Mídia":
Aceitam tudo
Trecho do livro "Por uma Vida Melhor" apresenta a pergunta
"posso falar 'os livro'?"
De vez em quando, alguém diz que lingüistas
"aceitam" tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um
comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa
oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.
Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas
com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários,
entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que
ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários,
quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG,
primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG,
e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a
comentaram sem ler.
Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também
para o caso do livro.
Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em
qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um
simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus
estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua.
Vale a pena insistir: de qualquer língua.
Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem
sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a
um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a
gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico
tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a
um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o
latim não tivesse artigo definido.
Não só não se pergunta se eles "aceitam", como
também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em
que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi
escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam
lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma
autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou
quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"
Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de
achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de
uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau.
Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de
supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem
um julgamento do Supremo!
Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta
encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um
mandato).
O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de
plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata,
dez real, três quilo). Se houver maias de dois elementos, a complexidade pode
ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece
invariável. O linguista vê isso, constata isso.
Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da
Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos
sábios de antanho.
O linguista também constata the books no inglês, isto é, que
não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma
espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso?
Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a
gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve
ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.
Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos ¿as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z". Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas.
Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só
teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver
nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode
ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do
linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.
Não "aceitar" construções como as acima mencionadas
ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria
para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que
o botânico paste.
Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um
descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então
inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300
cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente
nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que
você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300
cabrais.
Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer
Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm
opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal
livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.
O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já
sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao
livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil
que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se
lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos
relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em
relação à fala dos alunos.
Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.
PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs
e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do
livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles
defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão
mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem
fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria
reprovado.
PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o
livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA
na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os
livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado".
Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a
língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de
concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam
criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta
do que acontece com a língua DELES mesmos!!
Ora, a maioria deles apontam erros cometidos diariamente, mas que não desmontam a linguagem, coisa bem diferente do livro. Pequenos erros podem ser aceitos, grosserias bárbaras, não.. o lulês poderá ser a língua dos esquerdopatas, mas me mantenha longe dessa cambada de vigaristas!!
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