Márlon
Reis, Juiz de Direito no
Maranhão, membro do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral - MCCE, um dos redatores da minuta da Lei da Ficha Limpa, coordenador
e professor em cursos de pós-graduação, palestrante e conferencista, publicou artigo no qual fala sobre a posição que deveria ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à imediata validade da lei de iniciativa popular que tem por objetivo fechar as portas dos cargos públicos principalmente para políticos que tenham 'ficha suja';
Com a imediata eficácia da Lei da Ficha Limpa, certamente futuros 'malfeitos' serão evitados e o dinheiro público passará e ter destinos mais 'republicanos' do que aqueles que vêm sendo alvos de constantes denúncias. Apesar de longo, vale a pena ler as argumentações do juiz Márlon Reis, pois está na hora do STF tomar uma rápida decisão para que já nas próximas eleições a própria lei comece a 'faxina' que Dilma está impedida de efetuar em toda sua plenituda por questões políticas e atendendo a ordens de seu 'primeiro ministro' Lula:
“No centro das discussões está a resposta a uma indagação primária:
inelegibilidade é pena criminal ou condição para o registro da candidatura?”
A sociedade brasileira está à espera do julgamento da Ação Declaratória de
Constitucionalidade nº 30, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, em que se afirma a plena compatibilidade da Lei da Ficha
Limpa (Lei Complementar n° 135/2010) com os princípios afirmados pela
Constituição Cidadã.
No centro do debate está a resposta a uma indagação primária:
inelegibilidade é pena criminal ou condição para o registro da candidatura?
A resposta a essa pergunta conduz à solução dos dois principais impasses a
serem finalmente resolvidos pelo Supremo Tribunal Federal. Um é relativo à
aplicabilidade do princípio da presunção de inocência; outro se refere à
incidência do princípio da irretroatividade da lei penal.
Ambos os princípios a que acabo de me referir são inerentes ao Direito
Penal. O saber jurídico possui muitos campos (Administrativo, Ambiental, Penal,
Trabalhista, Civil, Eleitoral etc.), cada um dos quais regido por uma
principiologia própria. É especialmente no campo dos princípios que as
disciplinas jurídicas se distinguem.
Enquanto no Direito Penal uma sentença só pode ser executada quando se
esgotam os recursos, no Direito Processual Civil, por exemplo, é comum a
execução provisória dos julgados (art. 520 do CPC). Já em matéria eleitoral, a
regra é a execução imediata das decisões (art. 257 do CE).
Então, o que de fato é uma inelegibilidade? Qual é a sua natureza jurídica?
Os que afirmam ser a inelegibilidade uma sanção, se apegam a seus aspectos
exteriores. Consideram que o fato de ela impedir o acesso de alguém ao registro
válido da candidatura constitui uma punição, uma reprovação de uma conduta
baseada num juízo de perfil condenatório.
Não é isso, todavia, o que ocorre. Inelegibilidade não é uma sanção, é uma
condição jurídica. Enquanto as sanções implicam em limitação ao exercício de
direitos preexistentes, as condições constituem requisitos para o acesso a
novos direitos.
Segundo o art. 121 do Código Civil, “Considera-se condição a cláusula que,
derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio
jurídico a evento futuro e incerto”. A condição é, assim, um requisito para o
exercício de um direito. Em muitas situações, as normas permitem que se cobre o
preenchimento de certas exigências para que um direito possa ser exercido. As
condições permitem verificar se o pretendente possui as qualidades necessárias
ao alcance do direito.
Isso acontece em muitos campos. Se alguém pretende vender uma casa e aceita
receber o valor em parcelas, pode estipular que só negociará com quem se
predispuser a adiantar certo montante. Trata-se do estabelecimento de uma
condição. Se alguém oferece uma vaga de emprego, pode exigir do pretendente
prova de habilitação técnica.
Em matéria eleitoral, as condições aparecem como características que os
postulantes devem ostentar como requisito para a obtenção do registro da sua
candidatura. Nesse contexto, as inelegibilidades aparecem como condições
negativas cujo preenchimento impede alguém de se ver registrado candidato pela
Justiça Eleitoral.
A Constituição foi emendada em 1994 para determinar ao legislador que
editasse lei complementar fixando inelegibilidades que levassem em conta a
“vida pregressa” do candidato. Como o Congresso não adotou essa providência,
mantendo inalterada a Lei de Inelegibilidades (publicada em 1990), a sociedade
lançou mão do instrumento da iniciativa popular de projeto de lei (art. 14,
III, da CF) para reclamar a adoção da medida legislativa negligenciada.
A Lei da Ficha Limpa instituiu novas condições para as candidaturas. Por
meio dessas novas cláusulas, se estabeleceu o novo perfil que a sociedade
espera dos candidatos.
Quando se afirma que alguém já condenado por um tribunal (órgão colegiado)
por narcotráfico, pedofilia, homicídio ou corrupção não pode lançar-se
candidato, não se leva em conta sua eventual culpa pelo delito que lhe é
atribuído, mas tão somente a existência de um dado objetivo: a condenação.
Segundo as normas brasileiras, os analfabetos e, em certas condições, os
cônjuges de mandatários são inelegíveis. É uma boa demonstração de que a
inelegibilidade não possui caráter punitivo.
Além desses, a Lei da Ficha Limpa quer inelegíveis os que renunciam a
mandatos para escapar da aplicação de sanções de natureza política, como nos
casos de quebra do decoro parlamentar. A sociedade, por meio do Congresso
Nacional, tem todo o direito de afirmar que tais candidaturas são indesejáveis.
Da mesma forma, os condenados por tribunais nos casos gravíssimos que a lei
menciona são afastados, pela lei, do acesso à candidatura, pouco importando se
são ou não culpados. A culpa – elemento subjetivo – haverá de interessar apenas
à Justiça Criminal. À Justiça Eleitoral, no momento de processar os pedidos de
registro de candidatura, importará apenas a verificação de dados de natureza
objetiva (se é alfabetizado, se atingiu a idade exigida, se não possui
condenações em certas hipóteses etc.).
Enquanto a pena tem suas lentes voltadas para o passado (um fato que torna o
responsável passível de punição), a inelegibilidade tem sua vista projetada
para o futuro: interessa-lhe a proteção dos mandatos, dificultando o seu acesso
por parte de pessoas que ostentem indicadores objetivos de que podem pô-los em
risco.
É a própria Constituição quem afirma essa particularidade:
“Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de
sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o
exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (…)” (§ 9° do
art. 14 da CF).
Como se vê, enquanto a sanção penal tem propósitos punitivos, a
inelegibilidade tem por meta o estabelecimento do perfil esperado dos
candidatos. Essa é a finalidade de todas as exigências fixadas na Lei da Ficha
Limpa. Isso é assim porque nos domínios eleitorais prevalece o PRINCÍPIO DA
PROTEÇÃO, afirmado expressamente no citado § 9º do art. 14 da Constituição
Federal.
Visto que inelegibilidade não é pena, o que atrairia o princípio da
presunção de inocência, afasta-se desde logo a exigência do trânsito em
julgado.
Pode-se afirmar, então, que inelegibilidade não é pena, é uma condição
jurídica.
Não há nisso nada de novo. Essa já é a posição adotada pelo Supremo Tribunal
Federal.
Veja-se, a respeito, o precedente abaixo transcrito:
“(…) inelegibilidade não constitui pena. Destarte, é possível a
aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Complementar n° 64, de 1990, a fatos
ocorridos anteriormente à sua vigência” (MS 22087-2, Rel. Min. Carlos Velloso.
Diário da Justiça, 10/05/1996. Ementário nº 1827-03).
Observe-se que a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal afasta da
inelegibilidade o caráter de pena. Por razões lógicas, se reconhece sua aptidão
para alcançar fatos ocorridos no pretérito. É a própria Constituição quem o
declara: a inelegibilidade levará em conta a “vida pregressa” do candidato.
Digamos que a norma até aqui não considerasse que as pessoas casadas com
atuais mandatários fossem inelegíveis. Se ela passasse a fazê-lo a partir de
hoje, seria razoável imaginar que os que se casaram antes da inovação
legislativa permaneceriam elegíveis? É a esse raciocínio absurdo que se chega
ao adotar-se a idéia de que a inelegibilidade não pode considerar fatos
ocorridos no passado.
Na verdade, não ocorre na Lei da Ficha Limpa qualquer aplicação retroativa
de normas. A referida lei estipulou novas condições (causas de inelegibilidade),
que passarão a ser aplicadas a partir das eleições de 2012.
Se até 2010 foram aplicadas as flácidas normas até então vigentes, a partir
de agora o rigor aumentará em razão da vontade manifestada pelo Congresso
Nacional sob a forma de lei complementar à Constituição.
Trata-se de inovação que não altera fatos ocorridos no passado nem deles
lança mão para finalidades punitivas. Observam-se apenas os dados escolhidos
pelo legislador como relevantes para, cumprindo a missão constitucional,
verificar os dados objetivos que marcam a “vida pregressa dos candidatos”.
Só haveria retroatividade, nesse caso, se a nova lei pretendesse alterar o
resultado de eleições anteriores, realizadas sob o pálio de normas diversas.
Nada disso ocorre neste caso.
Gostaria de rememorar um momento importante desse debate. Em 21 de setembro
de 2010 foi lançado manifesto em que se afirmava:
“Nenhuma inelegibilidade se baseia na idéia de
culpa, mas na de proteção, segundo o declara a própria Constituição Federal. É
por isso que é aceita normalmente a inelegibilidade dos cônjuges, dos
analfabetos e dos que não se desincompatibilizaram de seus cargos e funções
dentro de certos prazos. Que ilícito praticaram? Por que estariam sendo “punidos”?
E o que dizer da inelegibilidade decorrente da rejeição de contas, decidida por
um órgão auxiliar do Legislativo, os Tribunais de Contas, que não exercem
função jurisdicional?
Tais casos bastam para demonstrar que não estamos
diante de medidas de caráter punitivo, mas de regras de proteção fundadas em
presunções constitucionalmente admitidas e que têm por escopo a proteção das
nossas instituições políticas. Mandato é múnus público, não se configurando
como bem individual. A inelegibilidade não é pena, mas apenas critério de
dispensa do sacrifício de servir ao povo.
O princípio do estado de inocência simplesmente
não é aplicável às inelegibilidades. Aqui vigora outro princípio
constitucional: o da proteção. A sociedade tem o direito político negativo de fixar
critérios para a elegibilidade, desde que o faça – tal como empreendido por
meio da LC nº 135/2010 – por via legislativa complementar à Constituição. Ao
fazê-lo, não considera a lei que os condenados por tribunais sejam culpados de
qualquer coisa, apenas estabelecendo que suas candidaturas não são convenientes
segundo o crivo do legislador.”
Tal documento foi subscrito por ninguém menos que
Paulo Bonavides, Celso Antonio Bandeira de Mello, Fabio Konder Comparato e
Dalmo de Abreu Dallari. Além destes, também o assinam os presidentes do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (junto com onze
ex-presidentes daquele conselho), da Associação dos Magistrados Brasileiros, da
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, da Associação Nacional
dos Procuradores da República e da Associação dos Juízes Federais. Outros
acadêmicos e autores de obras jurídicas estavam na lista de responsáveis pela
edição do manifesto.
Em resumo, o Supremo Tribunal Federal precisa
apenas seguir os seus próprios precedentes para afirmar a plena compatibilidade
da Lei da Ficha Limpa com a Constituição da República. Se desejar seguir
caminho inverso, terá que realizar a tarefa de dizer que inelegibilidade é pena
de natureza criminal, malferindo assim os rudimentos da Teoria do Direito e a
sua própria jurisprudência.